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Tive um professora no 10º ano que tinha a fabulosa ideia, diga-se, de todas as 2ªs feiras às 8:30 da manhã nos presentear com uma hora de "escrita criativa" como lhe chamava. Eu chamava-lhe o pesadelo contínuo. Podíamos escrever sobre o que quisessemos, em prosa ou em verso, e no fim os textos eram-lhe todos entregues sem assinatura que denunciasse quem os tinha escrito. Depois tornavam a ser distribuídos à sorte para serem lidos em voz alta. No fim, caso o autor quisesse poderia dizer que o texto lhe pertencia.
A mim calhou-me um poema de nome "o dia amanheceu cizento" e reconheci imediatamente a letra. Li-o em silêncio a primeira vez, e sabia que o texto seria o vencedor, logo, na semana seguinte, a Sara ia livrar-se da fantástica hora de "escrita criativa". Chegou a minha vez de ler em voz alta, coisa que eu detestava ainda mais do que "criar" alguma coisa às 8:30 da manhã. Quando terminei a leitura a sala ficou em silêncio até que a professora o interrompeu e disse:
- O que leste foi sentido...
Ao que eu respondi, num impulso que não consegui conter:
- Não, senti a pessoa que o escreveu...
A Sara era a gótica da turma, fria como o aço e qualquer palavra que proferisse cortava como facas. Não tinha amigos, pelo menos na escola, e por isso andava sempre sozinha, ou a escrever sentada numa cadeira perto do bar. Eu achava-a antipática e arrogante, ela própria fazia questão de construir barreiras que a impediam de ter, ao menos, alguém com quem partilhar os intervalos.
Pedi-lhe para ficar com o texto, ao que ela acedeu, hoje tenho-o num dos meus cadernos. Perguntei-lhe se me queria explicar o porquê dele, e assim a Sara deixou de passar os intervalos sozinha.
Isto para te dizer que não importa qual seja a imagem que tentas passar cá para fora, seja por gestos, acções ou palavras ásperas. Toda a gente tem dores e cicatrizes iguais ou maiores que as nossas. E em ti, a palavra desilusão é omnisciente, omnipotente, e omnipresente. Tudo sabe, tudo pode, e tudo vê.
Agora estás a pensar:
- Cala-te, não sabes do que falas...
- Sei... sei sim...
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